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terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Grades

Não há concordância verbal que seja essencial para a expressão de sentimentos. Errar gênero, número e grau indica um conhecimento linguístico de limitado alcance, apenas. O sentimento é indelével: impossível de destruir, geralmente, pelo uso incorreto da expressão escrita. Ou falada. Isso, pelo menos, quando o fluxo de sentimentos ocorre entre percepções semelhantes da realidade. E quando há o amor, ou qualquer outro sentimento cúmplice e intenso, mesmo havendo uma peculiar distância entre os envolvidos, eles hão de permanecer conectados.

Tive acesso a cartas trocadas entre namorados, familiares e amigos, os quais, um deles, pelo menos, estava preso. Ao lê-las, percebi que havia algo verdadeiro e honesto contido nelas. As palavras escritas flagrantemente erradas, em frases pontualmente desconexas, não limitaram, de forma alguma, o entendimento sobre a ternura do afeto expressado. Escrevo abaixo algumas considerações sobre as cartas que li.

‘Fulana, vc taligada que vc é minha parsa eu ti concidero a melhor amiga’. ‘Vc é minha parseira  e cempre cando precisar de mim pode contar comigo’. ‘Lembra cando comprava marmita pra vc eu cempre rachei’...
Notaram algo interessante? Carregamos o microcosmos que vivemos para qualquer lugar que vamos. Estejamos presos ou não, sempre estaremos presos as nossas referências de felicidade, completude, amizade, amor e consideração. Para quem possui poucos recursos, dividir uma marmita com alguém de quem se gosta é um grande sinal de ‘parceria’. E para com essa atitude são esperadas demonstrações de estima. A privação da liberdade de locomoção, num ambiente completamente hostil, é o ápice da pouca liberdade que se tinha antes da prisão. Estar num mundo cuja abundância de opções se manifesta a quem pode pagar, majoritariamente, realça o poder da caridade por parte daqueles que já se sentem oprimidos pela clausura da escassez de recursos. E quando tudo aperta, ‘aí, comesa a ir no culto e a busca a Deus que ele vai ti livrar de todo mal só ter fé’. ’Aí fica com Deus’. Até imagino o sentimento do autor quando escreveu o verbo ‘livrar’. Inúmeras imagens podem ser associadas a esse verbo, mas a única que surgiu na mente dele, muito provavelmente, seja a de Deus o libertando, livrando-o, das grades, devolvendo-o, então, à prisão da condição humana fora da cela. Escrever é se deixar fugir entre linhas, sem se preocupar com a absolvição ou preceitos morais.

Em outra carta, um homem, preso, envia uma mensagem suscitando ânimo para sua irmã, que também está presa. ‘Lamento os acontesidos em nossa família’, ‘tou arrependido e que nesse lugar só Deus’, ‘sei que com os erros ou aprende ou dezanda de vez’. ‘Que Deus te abençoe e te tira logo daí e te de a vizão serta’.’Amor eterno só de mãe e pai’. ‘Eu tou prezo na xxx . O fulano primo do cicrano tá aqui tbm o beltrano colega da fulana tá aqui tbm e dis que ficou com vc e manda um abraço’...
Notaram algo interessante? Carregamos o microcosmos que vivemos para qualquer lugar que vamos. Repeti? Sim. Nesse caso, dois irmãos estão presos. Um está junto de amigos e conhecidos na cadeia. Inclusive um teve caso com a irmã dele. Isso é o reflexo da sociedade em que ele nasceu, cresceu e viveu até então. O autor se associava com pessoas que mantinham os mesmos desejos, aspirações e vacilos. Encontraram-se na cadeia. Compartilhavam a mesma visão do mundo. Agora compartilham o mesmo mundo entre muros altos e grades rígidas. É trágico e cômico. Os conhecidos errando igual e pagando preços semelhantes. E a família sofrendo. Às vezes se tem tudo e erra-se. Às vezes, falta-se tudo e acerta-se. Nessa carta não dá pra saber o que houve. Mas, infere-se que o erro foi coletivo, do todo que sacrificou suas partes. A visão era turva e clareou-se apenas na prisão, pela aceitação de Deus. ‘Hoje sou um homem limpo que aseitou Jesus Cristo em minha vida e no coração’. Quando o afogamento é iminente, o sólido é a salvação. Seja do tipo que for.

Outra carta começa assim: ‘Olá Fulana Como tá você... aqui quem fala é teu irmão de criação... estou em xxx no maior veneno, preso em um tal de xxx caí foragido estou morrendo de saudades de você...’. ‘Tô junto com tigo até a morte’, ‘para de usar drogas. Isto não é vida você é uma mulher linda não quero vela sofrendo, jogada e acabada arriscada de pegar uma doença’. ‘Ninguém te escreve pra saber se está viva ou morta, ninguém te manda uma calsinha ou sabonete pra tomar um banho’. ’Eu vejo o que posso faser por você minha querida irmã é nóis Linda sertesa que apesar do lugar você deve tá parando com umas minas firmeza’. ‘Olha na umildade se tiver alguma querendo trocar umas ideias ou se conhecer ou queira algo sério tô aqui você me conhece sou sujeito homem e não deicho falando’. ‘Fica com Deus e que ele te proteja e as D+ meninas também’...
Sim, uma carta de preocupação, interesse, amizade, consideração e, por que não, de busca pela alma gêmea? ‘Deixar falando’, imagino eu, é simplesmente ignorar os sentimentos e a própria pessoa que demonstra interesse. O autor é homem sério. Não faz isso. Ele se importa. A conversa é simples e direta. É, mais uma vez, o microcosmos aplicado em menor escala. O nível de honestidade de fora é transportado para dentro. E, novamente, não parece haver pecado, erro ou nenhuma falha qualquer no caráter do detento. Estar no maior veneno é o quê? É ter sangue nos olhos por ter vacilado na vida, ou no ato, por ser pego? De qualquer forma, toda maldade é filtrada pelas letras da carta. Nela, aparecem apenas o cuidado com a irmã de criação e a vontade de encontrar alguém. Ambos os desejos nascem da necessidade de encontrar os pontos de apoio e sustentação para a vida que se leva na prisão: a família herdada e a que se escolhe. Cada uma com seu peso, vírgulas e pontos.

A carta mais romântica foi esta: ‘Olá minha querida, ontem foi o dia de nossa visita... cada dia mais eu me apaixono por vc, o nosso recomeço está sendo perfeito..., realmente vc mudou, está mais carinhosa e mais sencível. Eu adorei o pão, o bolo e a coca-cola... e o pão com franguinho também, vc está de “Parabéns”’. ‘Eu olho o cobertor e vejo vc enrolada nele, vc tinha acabado de sair do chuveiro, eu te sequei e enrolei vc no cobertor, vc é perfeita pra mim, não é pela sua aparência...é como eu sempre digo “beleza, sexo, corpo bunito acaba”, o que nunca acaba, e o que importa, é o sentimento que tenho por vc, que é puro e verdadeiro... não é por dinheiro ou pela sua aparência, o único enterese que eu tenho é de te fazer feliz’. ‘Temo que ter paciência pois sabemos que o fim desse triste capítulo da nossa história está chegando’. ‘Eu fiquei com o coração apertado de ver vc indo embora algemada, vc é tão onesta... eu fiquei aguniado’. ‘Nós somos feito de dois, nós se completamos, eu não me imagino sem vc e não dá para imaginar vc sem eu, e vc pode ter serteza que a nossa filha precisa de nós dois’. ‘...as lágrimas de hoje será o sorriso de amanhã, e vc pode ter serteza que estou guardando os meus sorrisos só pra você, não só os sorrisos, mas sim meu corpo , a minha alma e o meu coração... e só você tem a chave, vc não compro, ganho, você conquisto! com seu jeitinho doce, educada, amiga, fiel em fim, com seu jeito apaixonante que me seduz e me faz te amar cada dia mais e mais’...
No final, o autor apaixonado ainda escreve uma música e em um dos versos canta: ‘si eu te olhar mil vezes sempre vou estar me apaixonando mais’...
No dia de visita, ela prepara um almoço pra receber o marido e a filha, com tudo o que tem direito. E a retribuição não poderia ser mais querida e singela em palavras. Mais uma vez, o mini universo em que viviam foi expandido e abrangeu um mundo frio, de muros altos e regras rígidas. Tenho minhas dúvidas se estar preso pode mudar alguém, corrigi-lo, por si só. Mas, é um catalisador para mudanças no comportamento. É a privação da referência de vida que incentiva a busca pela reabilitação, imagino. O jovem apaixonado vendo-a andando algemada e, com certeza, a sensação dela de ser vista vulnerável e subjugada é uma cena de se fazer ambos os corações enternecerem. Ele, fazendo tudo para manter vivo o relacionamento. Ela, gradativamente, culpando menos a si mesma e a todos pelo infortúnio de estar presa, ficando mais carinhos e sensível ao mundo.

‘Por meio desta’, ‘Que esta carta encontre você bem e...’, são inícios comuns nas cartas. Mas, e se a carta encontrar o destinatário se sentindo mal, ela terá o poder de melhorá-lo? Escreve-se, portanto, boas notícias, principalmente quando se espera por elas. Escreve-se esperança quando há aflição. Escreve-se amor quando se busca por ele. Respeito, quando há humilhação. Vontade, quando há resignação. Fé, quando não há mais o que fazer, pensar ou esperar. Escreve-se o que manda o coração, com erros ou não.

Escrever é, sem dúvidas, o exercício máximo de introspecção. Quando o texto é publicado ou enviado a alguém, passa a ser uma análise do coletivo, da essência entre duas pessoas próximas: autor e leitor. Mesmo um terceiro ou outros tendo acesso à escrita, esse processo que você está fazendo, exatamente agora, é se tornar cúmplice de segredos, sentimentos e desejos. É entrar, por um curto período de tempo, na mente de alguém que o domina. Isso é liberdade. Uma mútua liberdade, de quem escreve e de quem lê. É o transbordamento do espírito dos canais impostos por terceiros, por limitações do intelecto ou por convenções gramaticais. Todas essas pessoas que escreveram as cartas, presas ou não, tiveram o que de outra forma talvez não conseguissem durante sua vida atribulada: um momento para si, para se entenderem e se fazerem compreendidas. E essa compreensão transcende culpa, moral, gírias, locuções, vírgulas e pontos. Se as pautas forem as grades da prisão, a fuga custa uma simples caneta.

6 comentários:

  1. Reflexão correta, Novak. Não existem palavras para o amor.
    Abraço.

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  2. A poesia é o que temos mais próximo de tradução dos sentimentos. Gostei daqui e seguindo o blog. Ótimo fim de semana!

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  3. textaço, Rob! quem levanta a primeira pedra não sabe nada de viver

    bjão e grata pela visita

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  4. Olá Rob,
    "E quando há o amor, ou qualquer outro sentimento cúmplice e intenso, mesmo havendo uma peculiar distância entre os envolvidos, eles hão de permanecer conectados"... Concordo em gênero, número e grau!

    Não há no mundo prisão que leve ao esquecimento do que nos é verdadeiramente caro...

    http://omundoparachamardemeu.blogspot.com/

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  5. "Se as pautas forem as grades da prisão, a fuga custa uma simples caneta."

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  6. Sensibilidade ímpar a sua de trazer esse texto, que traduz sentimentos de quem percebe o amor, a vida, a liberdade ao ser afastado deles. Fiquei emocionada ao ler. Parabéns.

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