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quinta-feira, 7 de outubro de 2010

O Censo – Parte II - Um cafezinho


Um cavalo seria bom pra você, disseram. E era. Percorrer longas distâncias recenseando, a pé, não era uma ideia animadora. Só que cuidar do animal, doma-lo para o serviço, não seria fácil. Além de que nunca tinha andado a cavalo. Não sozinho, pelo menos. Quando era bem pequeno tive essa experiência, devidamente acompanhado de um adulto, é claro. Mas, não
considerei seriamente a ideia. E, convenhamos, para quem me conhece pessoalmente, sabe que o único cavalo que combina comigo é o pônei. E um modelo básico ainda. Só sela, rédeas e cabresto. Nada de opcionais. Nem ferradura permitiria porque ferradura em pônei é salto alto, e a sensação de inferioridade seria maior. Ainda bem que não insistiram em me fornecer o bicho, fosse pônei ou pangaré.

Uma motinha também facilitaria o trabalho, comentaram. De fato, percorrer de moto a área a recensear diminuiria em muito o tempo para término e evitaria a fadiga. Mas, nem pilotar moto eu sabia (e ainda não sei). Também não levaram adiante a ideia, felizmente.

Trabalhei a pé em minha primeira semana como recenseador no interior. Na segunda, trouxeram minha bicicleta de marchas da cidade e com ela pude ir mais longe, para as regiões remotas da vasta área sob minha responsabilidade.

Quando não me convidavam para almoçar, eu mesmo me convidava. Dava uma fome ignorante andar entre colinas, estradas de terra, lavouras, abrir e fechar porteiras, fugir de cães completamente antissociais, desviar de bois e vacas bravos e, depois disso, conversar com as pessoas. Ainda lembro bem do gosto de feijão recém colhido da roça, com um leve gosto de terra, que me foi servido no primeiro almoço, numa casa simples onde acabara de entrevistar os moradores. Feijão, arroz branco e batatas cozidas. Tudo preparado em panelas de ferro num fogão à lenha. Tudo incrivelmente delicioso. E olha que não sou fã de feijão. É, o que faz a fome.

O final da primeira semana de andanças foi celebrado com um churrasco na casa de meus anfitriões. Não necessariamente por minha causa, mas domingo sempre é dia de churrasco. Família, amigos, vizinhos e quem mais fosse convidado. Havia apenas uma família para ser entrevistada no domingo. Reservei esse dia porque era o único que o responsável pela casa estaria no local. Decidi que iria até lá após o almoço.

O almoço foi divertido. Comida da boa, boas risadas, ouvindo muitos causos (causos mesmo, com temática matuta contados com palavreado de interior) e algumas cervejas... Não sei quantas bebi. Não me lembro. E vários dois-dedinhos da branquinha. Perdi as contas bem antes do primeiro par de luvas completo. Eu queria uma caipirinha ao invés do alto grau de pureza do destilado, mas na hora do aperitivo falaram que “a muierada é que faz esses negócio doce, com limãozinho e açúcar pra beber, porque o bão, pra home, é pura, né?” É, respondi. Afinal, não sou de fazer desaforo.

Contavam depois que minha barba não feita há uma semana e meu estado de média embriagues me faziam parecer um largado. Mas, minha consciência estava em pleno funcionamento, articulando de forma correta, porém lenta, as frases. Só estava naturalmente expansivo em meus gestos, e alegre. Estado perfeitamente aceitável depois de um generoso almoço entre amigos.

Resolvi, então, ir recensear o domicílio que faltara. Queria começar a semana em local novo, seguindo outra direção. Não estava a fim de deixar casas em locais distantes para serem recenseadas depois. Como minha bicicleta acabara de chegar, decidi ir com ela. Estreia-la no trabalho. A primeira tentativa de me manter equilibrado nela falhara. Se não fosse por um montinho de terra providencialmente surgido ao lado do pedal, eu teria me estendido no chão. Teria acordado de vez do fogo ou teria deitado de conchinha com o montinho e por ali ficado.

Percebendo minha situação e, devido a minha insistência em ir trabalhar naquela tarde (nada a ver com a ébria teimosia que talvez estivesse me tomando conta), alguém da casa se ofereceu para me levar até lá de carro. Era caminho, quem morava lá era compadre e havia assuntos que gostariam de tratar e mais algumas outras razões. Aceitei a carona e com o questionário básico reservado para o domicílio seguimos até o local.

Ainda bem que foi o questionário básico. Não estava em condições de ficar escrevendo muito. A estória que se bebe para firmar o pulso é uma baita enganação. Pode até ser que o pulso, em determinada dose, firme-se. Mas, de que adianta estar com a mão estabilizada se tudo que se vê está, no mínimo, em dobro?

Antes de ir conversar com o dono da casa, fiquei um pouco envergonhado. Imagine se ele percebesse meu estado? É claro que iria notar. Por isso, tinha que me manter concentrado, mantendo a conversa estritamente no âmbito profissional. Afinal, não é sempre que um recenseador do IBGE chega “alegre” para executar o trabalho. E ainda bem que eu não tinha ido sozinho, havia o amigo dele junto comigo e, pelo que me lembro vagamente, umas crianças foram junto para brincar com os filhos do entrevistado. Tudo isso serviria como distração. E a vergonha que eventualmente poderia sentir acabou quando percebi que, sendo domingo, churrascos acontecem em quase todas as casas. O recenseado também estava “alegre”!

Tudo transcorreu normalmente. Perguntas, respostas, conversas e comentários aleatórios, gritaria da criançada no lado de fora, diálogos paralelos entre os compadres, lavação da louça pela esposa e demais mulheres na casa, um cafezinho e pronto. Logo estávamos novamente no carro para voltar para casa. E acabou que meu espírito borracho passou despercebido diante do estado ebrioso do indivíduo.

Eu acho. Afinal, não me lembro direito.


Em outro post relato mais experiências como recenseador. Algumas nada divertidas que vivenciei.

4 comentários:

  1. Olá Rob...nesse momento venho aqui correndo,apenas para te agradecer o carinho deixado em meu blog.
    Promento voltar sentar,a fim de apreciar teus textos,ok??

    bjão poético

    milene

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  2. "Perguntas, respostas, conversas e comentários aleatórios, gritaria da criançada no lado de fora, diálogos paralelos entre os compadres, lavação da louça pela esposa e demais mulheres na casa, um cafezinho e pronto."
    Cafézinho, sei rsrs
    abraços!

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  3. Ah, que interessante, você trabalhou como recenseador. Gostei do relato. Quando vieram aqui em casa não era à mão que escreviam, era numa maquininha, tipo um Palm... enfim.
    Abraço

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  4. Um ótimo relato, não se pode imaginar que o trabalho de um recenseador inclua tantas aventuras. Já cheguei a pensar na atividade como forma de arranjar uns trocados extra, mas desisti, sou muito desajeitada e, pior ainda, preguiçosa!

    Abraços :)

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