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quarta-feira, 20 de outubro de 2010

O Censo – Parte III - Lágrimas nascituras


Nem sempre o que se ouve é digno de um sorriso com graça. Perguntas simples podem gerar respostas complicadas. Sentimentos que se evolvem com o tempo são pegos de surpresa pela inesperada voz que indaga. E a resposta sai entrecortada, talhada por emoções latentes. Perguntar não ofende, mas pode entristecer.

Em tal período, faleceu alguma pessoa que morava com vocês?, perguntei. Sim, ela respondeu. Perguntei, então, o nome, mês e ano de falecimento, sexo e
a idade da pessoa. Foi então que ela me disse que, na verdade, sofrera um aborto espontâneo nas últimas semanas de gestação e o bebê nascera sem vida. A comoção até esse ponto havia sido normal para alguém que perdera um ente querido. Acho até que minha pergunta fora encarada com naturalidade. A não aceitação de sua resposta, de minha parte, é o que a entristeceu sobremaneira.

Enterneci o máximo que pude minha feição quando vi que poderia haver lágrimas. Produzi um levíssimo sorriso carregado com uma compaixão séria, um compadecimento prático, porém, sincero. Sincronizei minha voz com as vibrações que tomaram o ambiente. Sem engasgos nem tons falhos disse que a pergunta se referia apenas a crianças que faleceram, no mínimo, minutos após o nascimento.

Como explicar que a criança cheia de vida, carinho, atenção, amor e cuidados, que ela carregara em seu ventre, ainda não era parte da família para o IBGE?* A naturalidade com que respondera o item, transmitindo a plena confiança de que o bebê abortado já possuía lugar cativo na família, deixou-me comovido. Por obrigação do trabalho tive que contrariar todo esse apego. A visão das lágrimas, que praticamente levitavam em suas pálpebras para que não se desnudassem em riozinhos na face, frente a um estranho, era de uma angústia perturbadora. Seu pulso teve que ser acionado para capturar rápida e discretamente uma gota fugidia que teimou em correr pelo seu rosto.

Permaneci sereno enquanto apagava com a borracha o que havia preenchido devido ao engano. Pensei, depois, que não deveria ter feito aquilo em frente a sua face consternada. Poderia te-lo feito depois, em casa. Cada movimento de destruição dos traços escritos pelo lápis poderia ser interpretado como um ataque à memória de seu filho. Um desprezo de minha parte. Algo que comprovasse que apenas ela, em todo o mundo, seria capaz de sentir a dor da perda de uma vida. A efêmera existência nunca fora tão fugaz quanto aquela, daquele filho já traçado no papel e que agora eu havia apagado. Ele já possuía um nome, um quarto, roupas e o amor mais puro e primaveril. Era o ser mais desejado, o filho almejado há tempos, mas que não contava nem para efeitos estatísticos. Usei-me de uma delicadeza que não pensei que existisse em mim. Fora compaixão sim. Forte empatia... Tudo bem, ela disse. E voltamos à entrevista.

E como sempre, na bonança da introspecção, remoí sentimentos mal abocanhados durante a conversa emocionalmente tempestiva. Os passos até o próximo domicílio serviram para realocar adequadamente o que senti, para um local que me fosse de fácil lembrança posterior. Queria manter a consciência da maturidade instantânea adquirida, a capacidade de relembrar oportunamente do valor de uma vida. Hoje, lembro nitidamente de algo que não me dei conta na época: uma tênue lâmina de lágrimas também levitou sobre minhas pálpebras naquele instante.
_____________

No próximo post sobre o censo, termino de relatar minha experiência nesse trabalho. Outra vez será uma experiência pouco agradável, mas que de alguma forma influenciou a personalidade de um jovem recenseador de 19 anos.

* Obs. No questionário de amostragem, há uma pergunta específica sobre nascimentos de bebês sem vida, com 7 meses de gestação ou mais, sem que sejam contados os abortos espontâneos. Nessa entrevista, o questionário era básico e, mesmo assim, a moradora tinha perdido naturalmente seu filho.

17 comentários:

  1. Rob

    Nunca imaginei que terminaria a leitura de um texto intitulado "CENSO", com lágrimas nos olhos. Não pelo motivo que fez com que elas escorressem.
    Tuas palavras são plenas de sensibilidade e verdade. Vão firmando-se diante de nós e ganhando vida com uma intensidade que emociona.

    Um grande abraço.

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  2. Rob,

    Incrivelmente, bem escrito, com sensibilidade tamanha.

    Esse sentimento é mt maternal, nós que geramos um ser, já desde o início há uma total conexão. Embora tenha nascido morto, ali estava uma pessoa, que já tinha lastro de existência. Mt tocante.

    Bjs

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  3. Rob, muito obrigada por teu carinho no meu espaço.
    Demorei, mas cá estou,e MARAVILHADA com o que começo a ler.

    Vamos nos falando.

    bjoss

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  4. Muito bom.
    Você escreve muito bem...
    Não sei nem o que dizer, as palavras que vc escolhe (ou as palavras que te escolhem), a maneira de descrever um situação...
    Muito bom... muito bom...

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  5. O que dizer nessas horas? A realidade é assim, cheia de imprevistos que devem ser contornados. Com você foi uma lágrima contida, com ela foi uma perda irreparável.

    abraços!

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  6. Triste. Texto muito bem escrito, com serenidade e emoção bem dosadas.
    Grande abraço.

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  7. Muy buen sitio. Te felicito. Saludos desde Argentina

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  8. Não entendi sua afirmação se ser antipático, quando lendo o sucedido no seu trabalho, deparo com pessoa bastante normal e agradável.
    Abraço, Novak.

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  9. sai mais cheio lendo seu texto, ainda estou preso em sua sensibilidade!

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  10. OLA
    ADOREI SEU BLOG E ESTOU TE SEGUINDO
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    BEIJOS

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  11. Incrível! De uma peculiar e adorável forma de retratar, se expressar... Adorei!
    beijo grande

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  12. Olá!!!
    Comovente. Adorei o texto. Beijos!!

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  13. Olá Rob!

    Também gostei do seu blog e estou lhe seguindo. Muito bacaba o que você escreve.

    Além do meu blog, Sob a Minha Pele, eu também me atrevo a escrever crônicas, rabiscar uns poemas, é uma ótima forma de espantar os fantasmas que nos perseguem. Pretendo fazer um blog só para divulgar meus escritos, mais ainda é apenas um projeto.

    Gostei muito de seus poemas! Parabéns!

    Beijos.

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  14. Adorei o texto! Gostei de conhecer seu blog, uma leitura tão agradável!

    Beijos.

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  15. Olá,
    Esse meu amigo sempre se superando.
    Parabéns!

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