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sábado, 13 de novembro de 2010

O Censo - Parte Final - Vida Roída

Parecia um chiqueiro, não uma casa. Porcos arriscavam viver em locais mais limpos. Resignei-me de entrar, mas por desígnios que jamais serão conhecidos, o questionário da vez era o de amostragem. Não conseguiria ficar muito tempo em pé, à porta, questionando alguém sentado que
insistentemente ofereceria um lugar. Entrei e me sentei após rápidas passadas desviando de ciscos, migalhas de pão e sujeiras indefiníveis, num chão de tábuas largas e sebosas.
Era puro asco o resultado dos cheiros aspirados. Em minha frente um sorriso débil, uma simplicidade repugnante, de um homem em estado acabado. Rugas queimadas pelo sol do campo, cabelos desgrenhados e um jeito bobo de sorrir revelando que na falta de dentes para apodrecerem, as gengivas lhe fizeram a vez. Não me sentia confortável diante daquela sujeira.
Percebi que havia mais gente na casa, nos fundos, para fora da porta, já no quintal. Olhavam de soslaio e quando eu olhava de volta, fugiam para trás da parede. E riam um riso misto de vergonha e debilidade. Não apareceram nenhuma vez na salinha onde estávamos, nem na cozinha imunda que vislumbrei logo à frente. Apenas uma criança, que aparentava uns três, no máximo quatro anos, toda suja e vacilante de postura veio a nós em determinado momento.
Fui o mais simpático e amigável que consegui. Aos poucos, porém, esse meu estado que cativava atenção de forma alegre e descontraída, transformou-se numa inquietação profunda. Um desgosto tremendo me tomou conta do espírito. Não conseguia olhar sem repugnância para aquele rosto velho e tosco que me sorria. Não distinguia se era, realmente, um sorriso. Talvez, aquela boca empestada fizesse com que ele vomitasse movimentos involuntários com os músculos da face e isso, então, se assemelhasse a sorrisos.
A boca patologicamente indolente proferia respostas quase incompreensíveis. Quando respondeu que o pedaço de chão em que morava, a terra cultivável, viva, em que residia era própria, não arrendada, alugada ou cedida, não acreditei. Repeti a pergunta por umas três vezes. Como poderia um terreno no interior, uma terra frutífera, pronta para ter um quintal rico e diversificado, um jardim ora simples, porém, bem cuidado, estar morto, entre sujeiras de coisas velhas e até pneus? Pneus velhos a quarenta quilômetros da cidade? Uma horta com couves de folhas secas e corroídas? Como possuir uma propriedade e não cuidar dedicadamente dela? Era um lavrador para os outros e suas culturas. Quanto às próprias, cultivava-as casualmente e com desleixo.
E a casa suja, mais que isso, imunda, de que maneira viviam ali? Em minha vida, já conversei com muitas pessoas humildes, que viviam em residências simples. Casas de chão batido, paredes de madeira sem pintura, móveis rústicos sem qualquer elegância, porém, todos muito limpos; feito um brinco, como diz minha mãe. A simplicidade do intelecto não serve como pretexto para uma vida em condições precárias. Não quero transmitir intolerância nem um padrão de juízos reacionários. Tem-se na vida a liberdade de escolher a forma de usufruí-la. Sinto apenas que, de tudo que vi no mundo, nada me fez acreditar que a sujeira seja consequência da pobreza, mas de um retardo cultural crônico e da falta de respeito consigo mesmo.
Perguntei o nome dos filhos. Ele soube. Perguntei a idade. Ele se atrapalhou todo nas respostas e correu buscar certidões, e gritou onde elas estão para a mulher tipo bugre, que se escondia e temia o homem branco de crachá. Enquanto isso, repugnado, olhava os cantos das imagens que estavam ao meu redor, procurando detalhes que me fizessem acreditar que estar naquela situação haveria de ser normal.
Olhei para cozinha, logo à frente, e vi uma pia lotada de louças sujas, encostadas numa parede tingida de picumã. Não apenas sujas, encardidas, incrustadas de camadas pretas e repulsivas. Panelas, pratos e talheres asquerosos. Enojei-me de modo que até então na vida não tivera me enojado. E o que enxerguei, mantendo os olhos naquela direção: um rato andando tranquilamente atrás das panelas, na guarnição traseira da pia. Acompanhei seus movimentos e seu trajeto durante um tempo. Não pensei nem senti nada por instantes. Apenas vi e revi o roedor em sua rota de descobrimentos, ou rota comum feita durante tempos.
Após o silêncio das sensações e indignações, recobrei a lucidez da repulsa. Ao ver o homem (ir)responsável pelo lar, perguntei: o senhor viu que um rato está andando na pia? Lembro que após a primeira indagação, um ódio peculiar me dominou o espírito. Além do roedor, eu e o homem de sorriso abobado havia uma criança a andar entre nós. A criança de três ou quatro anos, o pequeno menino encabulado, quieto, que perambulava pela sala. Será que o rato era seu brinquedo? Será que naquilo tudo havia uma normalidade que eu insistia em não perceber? Como conceber um antro imundo como ambiente familiar? A aversão a tudo me estava beirando o nível máximo. Repeti, duramente, a pergunta: o senhor viu que um rato está andando na pia? Ele só balançava a cabeça, assentia. Disse-lhe, inocentemente, que um gato ajudaria na tarefa de pegar o animal. Como resposta, murmurou algo que eu não entendi. E eu desisti.
Cabisbaixo e querendo mais que tudo estar a quilômetros de distância, distanciei minha mente do incompreensível e retomei o questionário. Ao anotar as idades das crianças, me surpreendi com o fato que o mais novo já tinha seis anos de idade. Surpresa e mais uma grande decepção. A julgar pela estatura e condições físicas, o menino deveria ter no máximo uns quatro anos. Olhei-o atentamente e me dei conta de quão desnutrido era. Seco e barrigudo. Um ventre inchado de vermes, provavelmente. Uma alimentação que, certamente, em nada o ajudava no crescimento sadio. Como esperar que hoje aquela criança tenha uma vida diferente daquela conhecida por ele? A falta de nutrição não compromete apenas o corpo, mas também o intelecto, o espírito e a vontade de ser. Dentre todos os moradores, fora pelo pequeno e pela incerteza de seu futuro que mais me entristeci.
Apenas uma das crianças frequentava a escola. Com exceção do mais novo, todas elas, três ou quatro, estavam em idade escolar. Para os padrões interioranos, a escolinha mais próxima estava bem perto, a uns dois quilômetros. Mas, mesmo assim, como pensamento ainda vigente em grande parte desse país, por que estudar? Já tinham idade para trabalhar na lavoura, ajudar seus pais. E a vida não haveria de ser diferente para elas, perdendo um precioso tempo manuseando cadernos, não enxadas. Mesmo podendo ir à escola, não havia incentivo familiar. Estudar não servia a mesa.

Assim como muitas outras crianças, aquelas viviam num lugar sem livros, revistas ou algo assemelhado à cultura. Em casas como aquela, os únicos lápis ou canetas disponíveis eram os do estojo da criança que ainda frequentava a escola. Como em outros lares sabidos por mim, provavelmente o caderno da lição de casa do estudante acabava rápido. Não porque havia muitos exercícios para se fazer em casa, mas porque os pais arrancavam as folhas para enrolar seus cigarros de fumo picado. Penso que é assim que qualquer sonho de uma vida melhor através da educação, se algum dia existiu, deixava de existir... E só de lembrar que algumas crianças como aquelas trabalhavam apenas com uma máscara, inadequada aliás, nas plantações de fumo, espalhando herbicidas e inseticidas nos pés (de fumo e delas próprias), já me nauseia o estômago. Trocavam o estudo, a fundação de um possível futuro melhor, pela certeza de uma futura saúde pior, todo um futuro pior, ou igual ao que sempre conheceram, numa ampla falta de perspectivas hereditária.
Saí da casa sem muita vontade para continuar o trabalho naquela tarde. Mas, continuei. Questionar a vida daquela família foi lançar uma pergunta sobre a visão que tenho do mundo. Até que ponto se é inocente? Até quando uma vítima dos revezes da vida continua sendo, realmente, uma vítima? Na cidade, pobreza, sujeira e falta de qualidade de vida são culpa do capital, do concreto e consumismo, dizem. E no campo, tendo sob os pés o melhor chão do mundo, o próprio, viver em situação lastimável será culpa de quem e do quê?
Escolher a miséria, qualquer que seja e onde quer que se esteja, para mim, é algo detestável.
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Essa foi a última parte das minhas histórias como recenseador no ano de 2000. As duas primeiras relatadas foram engraçadas e as últimas, dramáticas, por assim dizer. O que valeu, e muito, foi a experiência adquirida nesse simples e interessante trabalho.

8 comentários:

  1. Rob,
    Eu, realmente, me encanto com sua forma de escrever. Ficamos presos a história do início ao fim.
    Compartilho do msm questionamento. Há sim, um vício de pobreza suja em certas pessoas, msm que o descaso da sociedade seja efetivo, algumas criaturas escolhem, por essência, a vida em desgraceira.
    Gosto mt do bordão... sou pobre, mais sou limpinho! É isso... corpo, alma, casa e mundo limpos.
    Bjão e bom fds, meu querido

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  2. Rob,
    Também sempre achei que falta de dinheiro não tem nada a ver com limpeza. Talvez com educação ...

    Abraços

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  3. Olá Rob.

    Gostei muito de seu texto.

    É lamentável ver a que situações certas pessoas são impostas, o pior é ver quando elas se impõe a tais situações, ver que existe a chance de um crescimento e que elas não fazem nada para alcançá-lo.

    Beijos.

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  4. Olá Rob,

    Você escreve maravilhosamente bem, de forma a deixar o leitor hipnotizado, sem ter qualquer escapatória senão lê-lo até o fim...

    Grande beijo para ti,

    http://omundoparachamardemeu.blogspot.com/

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  5. Boa Rob...terminou muito bem, com chave de ouro...tem toda razão: completamente detestável!

    []s

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  6. Gosto ESPECIALMENTE dos teus escritos, Rob...
    Ainda que o texto por ti escrito, expresse a repugnância ao que para muitos, e para sua própria infelicidade; já se tornara comum...

    “O fato de se estar vivo... De poder apreciar, contemplar a admirável beleza que existe no simples; deveria ser o motivo maior para se desejar tornar tudo a sua volta, mais agradável e límpido. De forma a ser prazeroso poder saber que há no simples imensurável beleza. Basta apenas que saibas para essa beleza olhar. Pois me recuso a pensar que alguém por ser simples, e na simplicidade viver, enxergue tão somente o sombrio. Permitindo assim, que e a imundícia e a ignorância transformem além de seus pensamentos; também a sua vida numa paisagem suja, e abjeta. Destituindo-se então, do agradável odor, e do afável aconchego que na simplicidade há”.

    Aprecio teus escritos... Tua forma de mostrar o que pensas, através da escrita.
    Parabéns...
    Um beijo no coração.
    Nalva Nogueira.

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  7. Que lindo texto! Você retratou com naturalidade o "horror" que presenciou.

    Eu vim do interior, casa de madeira - poquissimos móveis - um único roupeiro -cresci ate meus 11 anos no meio do mato (mesmo); mas minha casa sempre foi muito limpa, o chão de madeira era lavado com escova, sabão e água quente; as roupas lavadas na beira do rio e "quaradas" no sol; as panelas de alumínio eram espelho - nas casas das tias nada era diferente tudo muito limpo (Confesso como criança achava até exagero, kkk); eramos agricultores de arroz; frutas, verduras e outros alimentos para o próprio consumo e ainda algumas vaquinhas e bons cavalos para trabalhar e vender.

    Limpeza ; higiêne; não tem nada haver com educação ou dinheiro no meu ponto de vista tem haver com cultura com a meneira que estes preciosos hábitos são nos passados.

    Na minha vida tenho aplicado estes exemplos além da casa; durante as coletas de agasalhos - tudo que vem para as minhas mãos e conferido. não repasso nada rasgado ou sujo, já fiquei uma semana de inverno lavando e costurando peças de roupas para doações.
    Primeiramente faço isto pela cultura que me foi passada pela minha mãe e depois pelo bom senso; afinal doar restos e sujeiras e humilhar mais ainda.

    Eu conheço casos como o que relatou na cidade e no campo e na minha opinião estas pessoas que vivem uma "vida selvagem" o fazem por opção; por incapacidade que as mesmas criam por comodidade ignorante de ir além; pois se não fazem nada não precisam se esforçar em aprender e assim não vivem apenas passam pela vida.

    Obrigada por dividir seu trabalho conosco.

    Felicidades.

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  8. Nossa, que relato chocante... é incrivel que algumas pessoas possam viver em condições assim.
    Muito bom o texto.
    Abraço

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